Os quadrinhos nas aulas de história: uma empreitada que exige cuidados


É muito gratificante presenciar o interesse de professores de todos os níveis de ensino pela utilização das histórias em quadrinhos em sala de aula. Mais do que isso, a cada dia novas iniciativas nesse sentido tornam-se conhecidas, a maior parte delas deixando evidentes os benefícios que a linguagem dos quadrinhos pode trazer ao desenvolvimento pedagógico das várias disciplinas de ensino.

De fato, os quadrinhos constituem-se em uma ferramenta bastante eficiente para transmissão de mensagens de todos os tipos; da mesma forma, devido à sua facilidade de leitura e atrativo visual, eles se constituem em uma excelente alternativa para atingir aqueles setores do público que, por um motivo ou outro, podem ter dificuldade para entender um texto totalmente lingüístico, mas que têm maior facilidade no entendimento das mesmas mensagens quando transmitidas de forma predominantemente icônica, como é o caso da linguagem quadrinhística. No entanto, como em tudo o mais, quase nada nos quadrinhos pode ser aplicado ao ambiente didático se não for precedido por cuidadosa preparação, análise e familiaridade com a linguagem, com os produtos disponíveis e com as características específicas da área de conhecimento em que se deseja aplicá-los. E isto é verdade seja qual for a área em que se estiver atuando.

Um professor que queira utilizar as histórias em quadrinhos para a transmissão de conteúdos didáticos relacionados com a História, por exemplo, deve tomar um especial cuidado na verificação de quais histórias em quadrinhos atendem a seus objetivos e como elas podem ser utilizadas em aula. Nem todas os autores têm uma preocupação especial em retratar fielmente os ambientes históricos específicos, caracterizando de forma apropriada costumes, hábitos, vestimentas, locais ou regimes políticos dominantes. Além disso, de uma maneira geral, a maioria dos produtos em quadrinhos disponíveis no mercado - revistas, álbuns, graphic novels , tiras, etc. -, constitui-se em veículo de entretenimento, buscando, em primeiro lugar, a criação de um vínculo prazeroso com o leitor e atendendo a suas necessidades lúdicas. A preocupação com a fidelidade histórica nem sempre é a motivação inicial, submetendo-se aos objetivos da narrativa (e não o contrário). Em muitos casos, inclusive - como nas histórias de Asterix , de Goscinny e Uderzo, ou em B.C. , de Johnny Hart -, a ambientação histórica tem muito mais a finalidade de possibilitar uma abordagem crítica à realidade sócio-política contemporânea ao leitor do que, propriamente, de refletir a realidade daquele momento histórico específico.

Pode-se encontrar todas as épocas da História do Mundo retratadas nas histórias em quadrinhos. Algumas mais, outras menos. Em alguns casos, pode-se identificar obras com detalhamentos preciosos em termos de vestimenta, localização geográfica e caracterizações sociais; em outros, elementos anacrônicos podem passar despercebidos em meio a um roteiro bem desenvolvido ou uma arte gráfica esteticamente impressionante. É o caso, por exemplo, de O Príncipe Valente , a grande epopéia em quadrinhos criada pelo mestre norte-americano Hal Foster em 1937 (depois continuada por J. Cullen Murphy), considerada por muitos como a perfeita ambientação aos quadrinhos do ambiente do final da Antiguidade e início da Alta Idade Média. No entanto, uma análise mais detalhada mostra que isto está muito longe da verdade: segundo afirma o estudioso Sergi Vich em seu livro La historia en los comics , uma das poucas qualidades que não possui essa obra-prima dos quadrinhos é exatamente "a de reconstruir com fidelidade e esmero um período histórico concreto" .

Em suas aventuras, o Príncipe Valente é armado cavaleiro no ano 433 da Era Cristã, desse episódio participando personagens reais contemporâneos àquela época, como o general romano Aécio, o imperador Valenciano III e o chefe huno Átila. No entanto, grande parte do meio-ambiente e sociedade em que ocorrem as histórias de Valente entra em choque com o período assinalado: tanto o protagonista quanto os cavaleiros que com ele contracenam são apresentados na história com tal luxo de detalhes e como verdadeiros paradigmas da nobreza montada, comportando-se como defensores dos humildes, da Cruz e dos Lugares Santos, ou mesmo submetendo-se a provas por amor a suas damas, de uma forma tal que evidencia um comportamento característico da época das Cruzadas, seis séculos antes do Papa Urbano II proclamar a primeira delas e bem antes de Maomé sequer ter nascido...

Outros anacronismos poderiam ser apontados nessa história em quadrinhos: os armamentos e armaduras de batalha são característicos dos séculos 14 e 15; os cavaleiros, quando em ambiente familiar, refestelam-se em móveis e vestem-se em sedas e brocados mais comuns à época renascentista do que ao ambiente da Idade Média; da mesma forma, junto a eles muitas vezes aparecem egípcios vestidos à moda faraônica, anterior em pelo menos uns três milênios ao momento em que ocorre a história, ou guerreiros vikings que levam em suas cabeças os famosos capacetes com chifres, que jamais utilizaram como indumentária (restringindo-se apenas, quando em batalha, aos capacetes cônicos com proteção nasal).

Assim, ainda que, nessa extensa saga em quadrinhos, possam ser encontrados muitos elementos materiais e humanos bem documentados e constituídos, a constante mistura de personagens reais ou fictícias pertencentes a momentos históricos muito distantes entre si tornam sua aplicação em ambiente didático um constante desafio para os professores. Ao buscarem utilizar a obra de Hal Foster em suas salas de aula, os mestres devem estar atentos aos diversos anacronismos que nela podem ser encontrados e buscar ressaltá-los para seus alunos, mostrando-lhes como seriam as corretas representações do período (o que evidencia que até mesmo aqueles quadrinhos com muitas imperfeições podem trazer benefícios ao espaço de aula...)

Do ponto de vista do conhecimento histórico, talvez as histórias em quadrinhos que mais se esmeraram em buscar a fidelidade máxima à época em que situaram suas narrativas sejam aquelas pertencentes à chamada Escola de Linha Clara Européia. Entre os autores dessa escola destaca-se Jacques Martin, autor das aventuras de um jovem gaulês Alix, L´Intrepide , criado em 1948 para a edição belga do Journal de Tintin . Nessas histórias, optando por uma cuidadosa reconstrução ambiental - normalmente baseada em referências originais -, o autor propõe sempre o maior realismo possível, apresentando um retrato bastante verossímil da realidade do primeiro século antes de Cristo. Para atingir esse objetivo, o faz com que as aventuras de seu pequeno herói se relacionem com fatos ocorridos no período, como a rebelião dos escravos ou a tomada de Alesia. Assim, à leitura dos álbuns de Alix, aos poucos, vão surgindo frente ao leitor esplêndidas representações gráficas dos povos e culturas mais importantes do período (celtas, gregos, egípcios, romanos, etc.), criando uma obra que atua com enorme eficiência tanto sob o ponto de vista do divertimento como sob o da aproximação didática a um passado remoto. No entanto, mesmo em uma obra tão preocupada com a verossimilhança histórica, pode-se encontrar alguns anacronismos: a Roma que Alix visita em várias de suas aventuras - principalmente em Les legions perdues , Le tombeau étrusque e Le fils de Spartacus -, é aquela de 200 anos mais tarde, pois as características de alguns edifícios ou monumentos em que transcorrem suas peripécias, como o Coliseu, as estátuas cobertas por mármores, o tamanho do fórum romano, entre outros, não existiam na época de César. Estes anacronismos, no entanto, constituem uma exceção em uma excelente obra quadrinhística que, em geral, consegue caracterizar fielmente a realidade do período onde transcorre o relato fictício.

Outros bons exemplos de histórias em quadrinhos com cuidadoso panorama histórico poderiam ser apontados e relacionados a época específicas, como a representação da batalha das Termópilas em Mort Cinder , de Alberto Breccia e Hector Oesterheld; a redescoberta do Egito antigo pelos europeus do século 18, em Arno , de Jacques Martin e André Juillard; o esoterismo da Idade Média e o mito do Golém em Le templier de Notre Dame , de Christian Piscaglia e Willy Vassaus, ou, ainda no mesmo período, a vida diária das pessoas que sofriam as agruras de uma realidade que poucas alternativas oferecia aos menos afortunados, nas duras vicissitudes retratadas em Les tours de Bois-Maury , de Hermann Huppen; a contrastante realidade da América Latina do século 17, nas peregrinações de Alvar Mayor , de Enrique Breccia e Carlos Trillo ou mesmo a vida dos pioneiros norte-americanos, conforme retratada por Hugo Pratt e Milo Manara em Tutto ricominciò com'un estate indiana , para não falar de dezenas de outras histórias, personagens e épocas específicas.

Exemplos de utilização dos quadrinhos em ambientes didáticos, especialmente em cursos voltados para o ensino da história, são abundantes. Em todo e qualquer caso, no entanto, é importante retomar o "conselho" dado em relação ao Príncipe Valente : uma atenção especial deve ser dada em relação a possíveis anacronismos, não se deixando o professor demasiadamente levar seja pela beleza do traço, seja pela sagacidade do enredo. A experiência demonstra que informações adquiridas por meio das histórias em quadrinhos tendem a se fixar com mais firmeza na mente dos alunos do que aquelas recebidas no processo tradicional de aula, o que é válido tanto para as informações corretas quanto para as incorretas. Além disso, a experiência também demonstra que as informações incorretas tornam-se evidentes com muito maior rapidez. E isso não interessa aos professores. E muito menos aos quadrinhos.


 
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